sábado, 15 de agosto de 2009

Uma cortada na cocaína
Wagner Bocão, ex-jogador da seleção brasileira de vôlei, larga o vício após se drogar por 15 anos

Carlos Henrique Ramos

Seria uma noite inesquecível na trajetória de Wagner Antonio da Rocha, o Bocão, ex-jogador da seleção brasileira de vôlei, então com 18 anos. Os quatro integrantes da banda americana de pop rock Siouxsie and The Banshees subiriam ao palco armado no Anhembi, em São Paulo, por volta das 21 horas. Durante o dia, ele dirigiu-se ao prédio da Bolsa de Valores, no centro velho da capital paulista, para botar as mãos na encomenda, tão almejada. Um operador do mercado financeiro lhe entregou um grama de cocaína, acondicionada em dois papelotes. Bocão guardou o objeto do desejo no bolso. Durante o show, eufórico e excitado, cheirou com volúpia de atleta. Era a primeira vez que ele tinha contato com a droga. Apenas a maconha, até então, fazia parte de seu cardápio particular. Ficou alucinado, teve ilusões até sucumbir, esgotado, na manhã do dia seguinte, em um dos cômodos do confortável apartamento de dois quartos, sala e cozinha que mantinha no bairro de Moema, zona sul da cidade.

Depois daquela noite, o vício embalou seu metabolismo. Foram 15 anos malhando forte em cima da cocaína. Foram 15 anos de derrotas consecutivas. Quando a situação parecia indicar um confinamento definitivo no ostracismo, a equipe do Intelbrás/São José, de Santa Catarina, surgiu para dar mais uma oportunidade, talvez a última, para Bocão, que completou 31 anos em 17 de janeiro. Sem dinheiro e sem perspectiva, morando de favor com a irmã Vera Lúcia, num conjunto da Cohab na rodovia Raposo Tavares, em São Paulo, o jogador chorou quando soube que ainda tinha gente disposta a investir nele. O time não é lá essas coisas e ocupa a última colocação na classificação geral da Superliga de Vôlei. O salário, cerca de R$ 2,5 mil, também não é nenhuma maravilha para quem teve um início promissor no esporte. Mas nada disso tem importância nessa altura do campeonato. Bocão recuperou a auto-estima, a dignidade e agora quer retomar o casamento com Silvana para ficar ao lado da filha Gabriele, de 3 anos. Está sem se drogar há um ano. "Isso é coisa do passado, que eu prefiro esquecer. Minha vida é outra, estou limpo", limitou-se a comentar.

A sua história, no entanto, corre de boca em boca dentro do vôlei e tornou-se pública em 1995, quando confessou o vício. E pediu socorro para os amigos. Talentoso, filho da mesma geração que revelou Maurício, Tande e Giovane, entre outros, Bocão sucumbiu diante da droga. Na intimidade, confessava o pavor de morrer de overdose. Orgulha-se de nunca ter injetado nenhuma substância na veia. Ainda assim, chegou a estocar cerca de 70 gramas de cocaína na despensa de sua casa, quantidade capaz de matar pelo menos meia dúzia de pessoas. Trocava o dia pela noite, não tinha mais forças para treinar. Certa vez, quando jogava pelo Guarulhos, viveu a experiência de atuar drogado. Detestou a sensação. O atleta de 1,97m e 89 quilos foi definhando lentamente. Chegou a pesar 80 quilos. Procurou auxílio espiritual na Renovação Carismática da Igreja Católica. Hoje é batizado pela Renascer, igreja evangélica cujos cultos freqüenta aos domingos à noite, na capital catarinense. "As pessoas ligadas ao vôlei comentam a recuperação do Bocão. Ele não tem mais a força física do passado, mas voltou a jogar bem. Por mais que tenha errado, merece essa chance", diz Carlão, atual capitão da seleção brasileira.

Bocão teve uma carreira meteórica e precoce. Natural de Marília, interior de São Paulo, foi revelado pelo Tietê. Aos 16 anos, vestia a camisa da seleção brasileira infanto-juvenil que disputou o Campeonato Sul-americano. Um ano antes, havia dado a primeira tragada em um cigarro de maconha. Em 1988, foi convocado por Bebeto de Freitas para jogar as Olimpíadas de Seul. Ficou na equipe verde-amarela até 1990, de onde foi barrado para nunca mais voltar. Nessa época, fora das quadras, já lutava contra o vício. A morte dos pais Iraci e Francisco foi o tiro de misericórdia em seu comportamento. Durante o velório e enterro da mãe, consumiu cinco gramas de cocaína. Depois, encarcerou-se no apartamento de Moema e chafurdou nas drogas. Era cliente assíduo dos traficantes do Jardim Brasil, localidade perto de Guarulhos.

Drogado e desinteressado, foi mandado embora do Banespa sem ter vestido a camisa do clube uma vez sequer. Decidiu, então, viver sem limites. Foram seis meses de consumo compulsivo da droga, com amigos e mulheres. Bocão gastou as economias viajando pelo Brasil, fumando e cheirando. Quando a contabilidade ficou no vermelho, arrumou contrato para jogar no Palmeiras. Tentou conciliar a rotina espartana de um atleta com as baladas noturnas. Demitido mais uma vez, virou um cigano do esporte. Ficava pulando de time em time. As portas estavam se fechando.

"Se não tivesse seguido o caminho da cocaína, o Bocão estaria até hoje na seleção brasileira. Apesar de todos os problemas que enfrentou, ele ainda é um excelente atacante", acredita Ricardo Navajas, técnico do Suzano. Navajas, conhecido por seu comportamento intempestivo, tentou ressuscitar a carreira de Bocão. Em 1991, indicou o jogador para o Suzano. Apesar das resistências, fez dele o capitão da equipe. "Enchi o cara de responsabilidade", relembra. "Mas ele teve um recaída, vivia na noite, cheirava muito", completa. O treinador se recorda que quitou diversas dívidas do atleta com os traficantes da região. "Pagava do meu próprio bolso." O episódio que encerrou seu ciclo na cidade foi uma briga corporal, que lhe rendeu mais de 30 pontos no rosto. Bocão apanhou de um grupo de rapazes depois de dizer alguns gracejos para a mulher de um deles. A partir desse fato, não havia mais condições de defender o jogador. "Era um farrista de grande coração, dividia tudo com todo mundo, um grande sujeito. Nunca teve problema existencial. Gostava de cheirar porque era sem-vergonha mesmo", afirma Navajas.

Bebeto de Freitas, ex-técnico da seleção brasileira e italiana, atualmente ocupando o cargo de dirigente de futebol no Atlético Mineiro, foi outro personagem que tentou erguê-lo. Mesmo com o currículo comprometido, Bocão foi para a Olympikus, de Campinas, em 1995, time dirigido por Bebeto. O início foi alentador. Conquistou o título nacional e casou-se com Silvana. Uma contusão, porém, o impediu de disputar o Campeonato Paulista. Isso foi motivo suficiente para devolvê-lo ao convívio com as drogas. "Ele tem dificuldades para se relacionar com a frustração", diz um amigo que não quis se identificar. Novamente demitido, internou-se para tratamento de desintoxicação em uma clínica. Desistiu porque não tinha como arcar com a mensalidade, de R$ 600. "Vou ajudá-lo sempre. Dei oportunidade a quem merecia e aprendemos juntos. Faz tempo que não falo com o Bocão, mas algumas pessoas me garantiram que ele está ganhando essa luta", declara Bebeto.

A irmã Vera Lúcia da Rocha Pereira, 45 anos, acha que Bocão já venceu o combate contra as drogas. "Estou aliviada, dormindo em paz", diz a funcionária pública, casada e mãe de dois filhos. Mas, por pouco, ela não jogou a toalha, desiludida e decepcionada com o comportamento dele. "Estava cansada de tanta mentira." Essa sensação se agravou quando o irmão ficou com R$ 75 reservados para o pagamento de uma conta doméstica. "Ele sumiu com o dinheiro, dormiu fora de casa e só reapareceu no dia seguinte." Desta vez, foi o cunhado Sebastião que o colocou no olho da rua, para desespero da irmã. E foi o mesmo Sebastião que correu atrás de Bocão para contar-lhe sobre a oferta de emprego, feita através de um telefonema. "Esse convite veio no momento certo, porque o resultado final de um usuário de droga é a cadeia ou o cemitério", diz Vera. Bocão fez sua opção, para felicidade geral do vôlei.

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