segunda-feira, 4 de abril de 2011

Radiohead, Caridade e Liberalismo

A banda inglesa Radiohead anunciou que irá vender seu novo disco de uma forma, digamos, pouco convencional. Quem estiver interessado no novo trabalho deverá entrar no site da banda e baixar à vontade as músicas. Logo em seguida o internauta será “convidado” a pagar pelos downloads o valor que desejar (incluindo zero!).

Não sei se a iniciativa dará certo ou errado em termos de lucratividade, mas causou uma verdadeira comoção entre aqueles que bradam pelo fim das grandes gravadoras, contra a cultura como mercadoria e outras coisas do tipo. Alguns socialistas/comunistas tomaram a atitude como uma espécie de bandeira a ser seguida, uma forma de revolta “anticapitalista”, anti-mercado. Visão parecida também ocorre em relação a cooperativas, caridade, ONGs e “trabalhos voluntários”. Todos esses arranjos e comportamentos são vistos, em menor ou maior grau, dependendo do socialista em questão, como anti-mercado, anticapitalista. Nunca se sabe muito bem o que um socialista quer dizer por “capitalista”; são tantas as definições, cada um usa uma... capitalismo acabou se tornando a palavra que representa “aquilo que é ruim”, assim como burguês para os marxistas ou neoliberal para a dita esquerda nacional.

Se tais comportamentos e arranjos podem ser considerados anticapitalistas por alguma definição bem restrita que se use por aí, certamente essas ações não são antiliberais e nem anti-mercado. Dado que o Radiohead tem direito de propriedade sobre sua produção ou pelo menos em relação à distribuição comercial (através de copyright, por exemplo), eles podem vender músicas ao preço que bem entenderem, até zero ou, como fizeram, aceitar qualquer valor que os consumidores ofereçam. É um uso legitimo de suas propriedades. Como se pode perceber o mesmo vale para cooperativas, ONGs, trabalhos voluntários. Se um grupo de cinco trabalhadores resolve, com seus ativos, fundar uma empresa onde os cinco são donos e colocam como regra que cada novo admitido também passa a ser dono, está apenas fazendo o uso considerado mais adequado de suas propriedades. Nada pode ser dito de um ponto de vista liberal contra tal ação. No entanto, geralmente, cooperativas são vistas como “iniciativa socialista”. O mesmo ocorre com a questão da caridade e de uma suposta obrigação moral do rico ajudar o pobre. A versão mais famosa desse erro é a já conhecida tese de que “Jesus Cristo seria o primeiro socialista”, muito defendida por socialistas cristãos da teologia da libertação. O erro fundamental é o mesmo: caridade é um ato voluntário, um uso adequado, do ponto de vista do proprietário, dos seus bens.

Tanto o erro de classificação no caso da venda exótica do Radiohead quanto os erros em relação a cooperativas, caridade seriam inofensivos se eles não levassem a uma conseqüência nefasta: a de se tratar como igualmente legítimos atos voluntários e atos coercitivos que visam o mesmo fim. Ato de caridade passa a ser equiparável eticamente a distribuição de renda realizada pelo governo. Ter acesso a discos de graça porque o ofertante assim quis passa a ser equivalente a obrigar outros a financiarem acesso a discos de graça. Construir cooperativas se torna igual a estatizar ou desapropriar fabricas para criação de cooperativas. Se os primeiros são legítimos, os segundos também passam a ser porque visam o mesmo fim. Nada mais errado. A ilegitimidade das ações estatais distributivas, das regulações de mercado que tanto agradam os socialistas não está no fim que pretendem, está no meio usado: a coerção, a invasão de propriedade. Imaginem que, por exemplo, o dono da GM tenha um surto de “bondade” e decida pagar aos seus funcionários um salário muito maior que o de mercado. Aumentar salário de operário é uma bandeira geralmente associada aos socialistas, mas um liberal teria algum motivo ético para reprovar o surto de bondade do dono da GM? A resposta é não. O dono da GM faz com seus bens o que bem entender e isso inclui fazer “caridade” para quem ele quiser. Algo completamente diferente é obrigar a GM a pagar maiores salários aos seus funcionários. As duas coisas levam ao mesmo resultado (pelo menos aparentemente), mas só o primeiro modo é condizente com princípios liberais porque não viola direito de propriedade algum.

A iniciativa do Radiohead apesar de agradar os “anti-mercadistas”, anticapitalistas, não tem nada de conflitante com os princípios que esse mesmo pessoal repudia nos seus ataques ao mercado e ao capitalismo. É tão somente o exercício do odiado direito de propriedade, base do sistema de mercado alvo predileto das criticas. No entanto a defesa da tese de que seria uma “rebelião anti-mercado” como muitos socialistas disseram ou apoiaram acaba contribuindo para a confusão ética que gera legitimidade para muitas ações de governos que se fossem mais bem analisadas seriam consideradas extremamente antiéticas. O exemplo clássico, como já foi dito, é a questão da caridade. Se caridade é algo bom e nobre, a distribuição estatal de renda também é. Essa transferência perversa de legitimidade é a principal conseqüência do erro envolvendo a classificação como anti-mercado da venda exótica do Radiohead. Seria igualmente legitimo o consumidor obter discos à preço zero porque os ofertantes por livre e espontânea vontade dão esses discos (ou seja, dentro dos princípios de mercado) ou porque alguém obriga outros a financiar discos à preço zero (princípios anti-mercado). Se obter discos à preço zero (discos aqui servindo como um termo para algo mais genérico como cultura) é uma bandeira socialista, não é a mesma coisa chegar a isso porque os produtores de tais bens assim o querem ou chegar à isso através da coerção. O liberal apóia o primeiro, mas repudia o segundo. O primeiro (como foi o caso do Radiohead) está completamente dentro dos mesmos princípios que originam e mantém os mercados, o segundo não. Isso ainda desconsiderando a hipótese de que tudo isso não passa de uma jogada de marketing para conquistar o apoio, digo, dinheiro, dos fãs que na sua maioria são “politizados” e entusiastas de práticas como essa. Se esse for o caso, bem, nem as gigantescas e malvadas gravadoras tiveram tão maquiavélica idéia.

fonte: http://depositode.blogspot.com/2007/10/radiohead-caridade-e-liberalismo.html

2 comentários:
Thomas H. Kang disse...
Os socialistas, não sendo liberais, podem perfeitamente adotar uma ética conseqüencialista na qual apenas o que de fato se realiza importa na avaliação ética. Portanto, se por meio de caridade (que é voluntária) ou redistribuição de propriedade, atinge-se o mesmo fim, não há nenhum problema na ótica de quem pensa assim.

Mas aí temos visões éticas diferentes. Pelo jeito, tu defendes que a tua visão é um princípio ético universal (nada mais kantiano...)

o problema do libertarianismo (perdão pelo neologismo) é aquilo que sempre falo, ele negligencia as conseqüências. Mesmo que tu afirme que adotar os princípios libertários seja conseqüencialmente benéfico, na hora de julgar um estado de coisas em que no limite tu tenha que escolher entre o princípio ou a conseqüência, tu vais ficar com o princípio. Tal limite é bem exemplificado nas piadas que se fazem em torno do imperativo categórico kantiano por exemplo. Como dizem os biógrafos de Kant, a doutrina moral dele tem relação forte com a moral pietista por ele herdada. Falo mais de Kant porque conheço um pouquinho mais (isso que não conheço nada de coisa alguma em filosofia na real).

abs

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