quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Brasil: tempos de futebol e capitalismo. por Paulo de Tarso Soares

Surpreendi-me com o convite para escrever um texto sobre futebol e capitalismo. Iniciei-me no ""mundo" do futebol torcendo pelo Botafogo, numa época em que os ídolos eram Dino (suprema elegância) e Vinícius (Vai, leão!) e depois vibrei com Garrincha, Didi, Nilton Santos etc. Comecei a torcer pelo Palmeiras por causa do Chinesinho e vibrei com Ademir da Guia e Dudu. Como, então, hoje, ter vivo interesse por futebol? A mercantilização e uma forma primária e selvagem de luta de classes chutaram esse interesse para a linha de fundo, perto da bandeira do escanteio. O convite foi reiterado, lembrando exposição em que satirizei foto com torcedoras da seleção em trajes sumários. O texto que se segue não tem a pretensão de originalidade, mas a de ser uma aplicação correta do que aprendi lendo K. Marx, V. Lênin, G. Lukács, G. Debord, J. Holloway e D. Bensaïd. Não são poucos os que sonham que luta de classes é coisa do passado. Um número maior reduzem-na ao conflito entre patrão e empregado. Ledos enganos! O capitalismo é modo de produção da vida eivado de conflitos. Conflitos entre os tempos de cultura, política, economia. Conflitos entre trabalho vivo e morto, produção e demanda. Burguesia x proletariado é conflito centralizante, cuja função não é empobrecer a análise, é permitir a transformação do conhecimento em estratégia política. O sujeito, no capitalismo, torna-se um apêndice do seu apêndice. O homem se torna um apêndice das coisas. Isso se acentua enormemente na fase atual de desenvolvimento do capitalismo, no estágio superior da contradição entre o caráter social da produção e o caráter privado da apropriação, em que predominam os monopólios, em que apesar da produção mercantil continuar reinando, a maior parte dos lucros é gerada nas maquinações financeiras, na fase em que o esgarçamento do tecido social está próximo do rompimento. A violência da inversão sujeito-predicado está presente em todas as camadas sociais, mas seu impacto não é idêntico. Nas camadas privilegiadas, o indivíduo vive para o trabalho, não tem tempo para a família, só tem prazer no "big" apartamento no bairro chique, nos eletroeletrônicos de última geração, no carrão etc. Vale qualquer coisa para conseguir mais riqueza. Todo comportamento predador é "justificável" (ressaltem-se as aspas), seja com colegas, fornecedores, consumidores, seja com família e amigos. A felicidade está nas coisas. A rigor, não é o indivíduo que possui as coisas, elas que o possuem. Esse constrangimento invisível está presente nas camadas não privilegiadas, mas lhes é negado o acesso aos bens. A felicidade também está nas coisas, mas o indivíduo passa horas e horas "pendurado" num transporte de péssima qualidade, mora em condições subumanas, sem apoio decente nas áreas de saúde, educação e sem acesso à cultura. O comportamento predador, cuja expressão máxima é a criminalidade, faz parte e condiciona seu cotidiano. Quem é o típico torcedor que, mediante as torcidas organizadas, domina os estádios? Ele vem das camadas social e econômica mais baixas, vive na periferia, tem reduzida escolaridade, quase nenhuma perspectiva de vida. Como, então, ele extravasa sua frustração diante de um mundo que faz o elogio da opulência, mas a restringe a pouquíssimos? A felicidade que, por limitação na renda, não consegue ter nos bens, ele tem no time de futebol. O time de futebol substitui os bens que ele não pode ter e faz sua "felicidade" (ressaltem-se as aspas). A torcida pelo time de futebol não é diferente do seu cotidiano. A violência física reproduz a violência das condições indignas de vida. Brigas entre torcidas e depredações na ida e na volta dos estádios são vistas como lazer. Atenção, que ninguém saia por aí dizendo que os estou inocentando. Estou, sim, fazendo a crítica de um sistema crudelíssimo, que transforma homens em coisas, ou melhor, em algo próximo dos animais selvagens. Por que a violência não é usada contra o patrão, e sim contra os iguais? As perspectivas políticas que lhes são apresentadas são a de uma aristocracia operária (hoje no poder, em nome da oligarquia financeira), a de um anacrônico poder proletário (não abole a dominação, só a inverte) e a de um pleonasmo (socialismo e liberdade) imaginariamente construído mediante paradoxo (a velha prática de aparelhamento de instituições). A violência não é usada contra o patrão porque a subordinação ideológica faz com que a intenção não seja abolir a violência, e sim a de se comportar violentamente como o patrão que sonham ser. A violência que lhes está disponível, ou melhor, que lhes é permitida, é a violência física contra os iguais a quem eles querem dominar, subordinar, submeter. Dirão alguns, externando indignação: "Mas essa violência não atinge somente os outros violentos, ela atinge inocentes". Nessa história não há inocentes. Somos todos cúmplices, quando não nos reconhecemos nas relações sociais que nós mesmos produzimos, quando elas nos parecem estranhas, como se viessem de fora e nos fossem impostas. Isso vale para a violência nos estádios e para as "pizzas" servidas no Congresso Nacional. Imaginamos que elas nada têm a ver conosco. Abominamos tais comportamentos. Convenientemente omitimos que nada fazemos realmente para mudar essa situação. Temos, sim, responsabilidade pelas "pizzas" no Congresso e pela violência nos estádios. Afinal, o que fazemos além de reclamar contra as torcidas organizadas e contra as autoridades que não tomam providências? Nossa retórica é contestadora, mas nossa prática, mediante a omissão, é apoiar um sistema violentíssimo. As torcidas só respondem aos estímulos que recebem. Elas jogam na nossa cara a violência da sociedade. As relações sociais, na atual fase de desenvolvimento do capitalismo, são intermediadas pelas aparências. Parecer é mais importante que ter ou ser. Só se aparenta o que não se é. Dito de modo direto, a farsa é característica da nossa sociedade. Criticamos veementemente a violência nos estádios, mas fechamos os olhos para a violência que as origina, a violência das condições de vida de parcela esmagadora da sociedade. Fazemos isso conscientemente? A resposta é: "Não necessariamente"! Injetam-nos doses maciças de falta de lógica, que nos fazem perder a capacidade para distinguir o que é importante do que é secundário ou fora de propósito; o que é incompatível do que é um bom complemento; o que uma determinada conseqüência implica do que ela impede. Não conseguindo reconhecer nada sozinhos, somos tranqüilizados pelos especialistas. Narrativas inverificáveis, estatísticas incontroláveis, explicações inverossímeis e raciocínios insustentáveis são apresentados como evidências inquestionáveis. Essa vida é um espetáculo! O futebol faz parte dele. Há muito que o comando do futebol está nas mãos dos que cuidam de negócios. Futebol, hoje, é essencialmente negócio. A adoração ao "clube-empresa" é crença legitimadora dessa situação. Amor ao clube? Não vou negar que ainda exista, mas não é predominante. A imprensa critica, mas, quando os resultados são bons, "esquece" que eles são frutos dos negócios e os tratam como se decorressem do amor ao clube. Ela vive da venda de anúncios cujos preços estão positivamente relacionados com o número de leitores-ouvintes-telespectadores. Vale, então, apresentar a mulher como objeto sexual, vale explorar a animalidade, vale explorar a ignorância, a incultura, vale elogiar um patriotismo que há muito foi jogado no lixo. Vale tudo para sustentar os negócios futebolístico e midiático. A imprensa esportiva faz parte de um negócio que organiza, com habilidade, a ignorância do que acontece e o esquecimento do que aconteceu. Por baixo do romantismo, da festa, há o predomínio dos negócios, a violência de uma luta de classes primária e a hipocrisia de muitos. O elogio do amor ao clube/seleção legitima negócios (não poucos malfeitos, alguns antiéticos e até ilegais). O futebol jogado é cada vez mais medíocre. Não há assincronia (conflito) entre os tempos do futebol e da decomposição do capitalismo. Não tenho emoções positivas com espetáculos desse tipo. Que me perdoem Marcos, Sérgio, Rogério Ceni e, provavelmente, Tevez.

PAULO DE TARSO SOARES é professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP
Retirado de Ordem dos Economistas do Brasil citando como fonte a Folha de São Paulo Especial (28/05/2006)

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