domingo, 26 de julho de 2009

Ainda sobre grandes finais

James Stewart em "Janela indiscreta", de Alfred Hitchcock: final tecnicamente primoroso
André Setaro


Os grandes finais, que desapareceram do cinema contemporâneo, são essenciais para a emoção do desfecho do filme, porque proporcionam uma certa estesia quando o filme termina. Para se sair um pouco de Billy Wilder e Alfred Hitchcock, embora ainda se volte a eles, Glauber Rocha, este que é o maior realizador cinematográfico brasileiro de todos os tempos, possui um fecho admirável em "Deus e o diabo na terra do sol". Mortos Corisco e seu bando por Antonio das Mortes, a partitura intensa de Villa-Lobos, mostra Manoel, o vaqueiro (Geraldo D'El Rey) a correr, desesperado, ao lado de sua mulher Rosa (Yoná Magalhães) pela aridez do sertão nordestino. De repente, esta, a não agüentar mais a corrida, tropeça e cai (a lenda conta que Yoná caiu mesmo de exaustão e Glauber continuou a filmar), mas Manoel continua o seu percurso de desespero para encontrar o mar, simbólico ("O sertão vai virar mar", diz a letra de Sérgio Ricardo). E, corte, o mar aparece, na sua imensa grandiosidade.

Mas os realizadores brasileiros pouco ligam para dar ao final de seus filmes esta espécie de estesia que Glauber propiciou em "Deus e o diabo na terra do sol". Há um certo descaso para a emergência da emoção como se esta fosse um lugar-comum, um clichê, o que se constitui em ignorância "in extremis". Gosta-se, aqui, de filmes que emocionam e, se não fosse por ela este comentarista, cinéfilo há meio século, talvez não tivesse prosseguido em seu itinerário de ver filmes e filmes e sempre à cata da emoção, da estesia, do assombro.

Em "Janela indiscreta" ("Rear window"), de Alfred Hitchcock, um dos maiores inventores de fórmulas da história do cinema, James Stewart, preso numa cadeira por causa de sua perna engessada, não liga muito para os encantos de Grace Kelly até que esta decide enfrentar o perigo e ir ver o que está a acontecer nos apartamentos vizinhos. Stewart sempre a incentiva a ler outras coisas que não as revistas de moda. No final, dada a resolução, a câmera "passeia" pelos apartamentos vizinhos e vem dar nas pernas engessadas de Stewart (que, na confusão resolutória, quebrou a outra). Num mesmo movimento, descortinada estas, vê-se a bela Grace Kelly a ler um livro sobre o Egito enquanto Stewart dorme, e, constatado por ela que ele realmente está em sono profundo, troca o livro pela revista "Bazaar" (uma revista muito famosa de moda americana). A beleza do final se faz pelo movimento de câmera pontuado pela partitura de Franz Waxman.

Em "Pacto sinistro" ("Strangers on a train"), tudo começa com um encontro casual, num trem, entre o tenista e aquele que lhe propõe celebrar uma troca de assassinatos. No final, com a resolução, volta-se ao trem onde o tenista, livre dos problemas, está com sua mulher e, de repente, um desconhecido vem a lhe perguntar se é ele o famoso Guy. Imediatamente se levanta o casal sem responder. Mas em "Os pássaros" ("The birds") não há o "the end". O filme não tem fim. Obra apocalíptica, não existe um fecho resolutório. O que acontecerá aos personagens que, apesar de terem conseguido sair da casa onde estavam aprisionados pelo ataque dos pássaros, rumam sem destino ao desconhecido?

Em "O professor aloprado" ("The nutty professor", 1963), de Jerry Lewis, assim como em seu filme seguinte, "O Otário" ("The Patsy, 1964), o realizador faz com que, no final, e sem" "the end", os atores, um por um, agradeçam a uma imaginária platéia - que, na verdade, é o público das salas - como é comum no proscênio. Em "The nutty professor", Lewis tropeça e parte, literalmente, a lente da câmera.

Se, atualmente, é praxe a desmistificação do espetáculo cinematográfico, isso não ocorria nos tempos áureos de Hollywood. Os filmes procuravam oferecer uma impressão de absoluta realidade e a montagem era feita de tal modo que a impressão que se tinha era a de uma continuidade total, quando, na verdade, um filme é construído através de tomadas, de fragmentos, que são depois montados. Isto quer dizer: o cinema americano procurava "passar" a idéia de uma continuidade, como se o filme fosse feito de "uma vez só" e a descontinuidade era disfarçada pela continuidade bem feita, pela edição cuidadosa para evitar choque de proporções. Procurava-se mostrar tudo como se não existisse um narrador, um cérebro a movimentar a "mise-en-scène".

A partir dos anos 60, no entanto, se dá início a um processo desmistificador levado a cabo com grande maestria por cineastas como Jean-Luc Godard e Jerry Lewis, entre outros (é verdade que houve alguns casos esporádicos desmistificadores, como em alguns filmes do genial Buster Keaton).

Conta Máximo Gorki que a primeira vez que viu um filme em sua vida a impressão que teve foi a de corpos dilacerados por causa dos fragmentos, dessa descontinuidade referida que o espectador habituado a ver filmes já incorpora como normal. Hollywood, cuja sustentação estava no "studio system", no "star system", e, ainda, na divisão do filme em gêneros, padronizou a linguagem cinematográfica com o propósito da opacidade, a fim de que o público não viesse a perceber a linguagem do cinema, a ter sempre a impressão de que a narrativa se desenvolve dentro de um fluxo contínuo. A montagem narrativa, que se sistematizou em "O nascimento de uma nação" ("The birth of a nation", 1915), de David Wark Griffith, é a utilizada até hoje pela indústria de entretenimento.

As experiências de Eisenstein não foram incorporadas pela maioria dos realizadores de Hollywood, ainda que sua influência em determinados cineastas. O final de "Intriga internacional" ("North by northwest", 1959), de Hitchcock, tem muita influência da estética do autor de "O encouraçado Potemkin", quando Cary Grant e Eve-Maria Saint estão a ser perseguidos no Monte Rushmore, principalmente no que diz respeito à montagem "dentro do plano" (as diferenças de proporções, a escala, os personagens diminutos diante das esculturas imensas dos presidentes americanos).

Jean-Luc Godard traumatizou toda uma geração com "Acossado" ("A bout de souffle", 1959), e o "grande finale" deste filme é apoteótico para o surgimento de uma nova era: em "travelling" (um movimento de câmera), a câmera acompanha, por uma rua de Paris, o personagem de Belmondo, Michel Poiccard, que já a morrer por causa de um tiro desfechado pela polícia, deambula até cair. Um "close up" dele, sob o olhar atônito de Jean Seberg, mostra-o a fazer seus três tiques costumeiros a estabelecer, com isso, uma atonia também no espectador.




André Setaro é crítico de cinema e professor de comunicação da Universidade Federal da Bahia (Ufba).

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