São Paulo - "Lenina, depois desse dia cheio de coisas estranhas e de horrores, sentia-se com direito a um descanso completo e absoluto. Mal chegaram à hospedaria, tomou seis comprimidos de meio grama de soma, deitou-se na cama e ao cabo de dez minutos vagava numa eternidade lunar.
Passar-se-iam pelo menos dezoito horas antes que voltasse ao mundo real." ("Admirável Mundo Novo"- Aldous Huxley- publicado pela primeira vez em 1932).O final do século passado ficou conhecido, no âmbito da medicina, como a década do cérebro. Tecnologias de ponta em diversas áreas da ciência contribuíram para um grande avanço no conhecimento da fisiologia cerebral, permitindo uma melhor compreensão de emoções, comportamentos e doenças a partir de fenômenos químicos que ocorrem na intimidade dos neurônios.
Desvendados e mapeados os caminhos metabólicos, entra em cena a moderna bioquímica que, num verdadeiro processo de carpintaria molecular, deixa de lado o acaso, a sorte ou o acidente e vai sintetizar um novo e específico remédio para atuar exatamente onde está a origem do problema.
Foi dessa forma que surgiu a fluoxetina, medicamento que aumenta a quantidade e a disponibilidade de serotonina cerebral, melhorando o humor de pacientes com depressão e controlando sintomas obsessivos - compulsivos presentes em algumas enfermidades psiquiátricas. Como a fluoxetina, existem, hoje, numerosas substâncias que interferem na fisiologia cerebral e, por isso, induzem o sono, reduzem a ansiedade e a angústia, acalmam os mais agitados, aceleram os mais vagarosos.
Enfim, esta enxurrada de psicofármacos disponíveis é capaz de interferir nos sentimentos, no discernimento, nas atitudes, na fome e até nas "cores" com que os fatos da vida se nos apresentam.
São inegáveis os benefícios que tais medicamentos podem trazer aos pacientes portadores de depressão severa, TOC (transtorno obsessivo compulsivo), síndrome do pânico, distúrbios de atenção e outras graves enfermidades mentais.
Por outro lado, chama a atenção o outro extremo deste importante avanço que estes novos produtos da criação humana representam para o tratamento de pessoas que realmente se encontram necessitadas de intervenção médica: o uso indevido e leviano de tais substâncias.
Continuando no exemplo da fluoxetina, no mundo todo, são aviadas mais de um milhão de receitas por mês e mais de 35 milhões de pessoas já usaram sua fórmula. Como qualquer remédio, ela apresenta possíveis efeitos colaterais e, entre os mais freqüentes, destacam-se: erupções cutâneas, diminuição importante do desejo sexual, inquietação psico-motora e diminuição do apetite.
A maioria dos pacientes com distúrbios de humor, de qualquer intensidade, procura em primeiro lugar um médico não especialista que, ou por impossibilidade de encaminhamento para um psiquiatra ou pela vontade de tratar mais rapidamente o queixoso, acaba receitando uma droga modificadora de humor. Assim, ocorrências normais na vida de qualquer pessoa como desentendimentos conjugais, luto e dificuldades financeiras que muitas vezes são necessárias para forjar a personalidade e o caráter do ser humano, ao invés de merecerem a devida abordagem são objeto de um tratamento químico inadequado e desnecessário.
Ao interferir na cadeia metabólica da serotonina, a fluoxetina e outros sucedâneos têm a capacidade de interferir diretamente na expressão da personalidade de quem está sob seu efeito modificando suas atitudes, pensamentos e palavras. Como disse uma paciente, observadora perspicaz, comentando sobre sua experiência com a fluoxetina: "Eu ficava com cara de paisagem quaisquer que fossem os acontecimentos à minha volta".
A manipulação genética dos seres vivos, do homem inclusive, desperta no mundo de hoje uma apaixonada discussão ética. Não seria o caso de discutirmos, também, a ética da manipulação química dos cérebros humanos?
(*) Walter Labonia Filho é médico e professor de Sivananda Yoga (walterlabonia@estadao.com.br)
(**) O conteúdo dos artigos médicos é de responsabilidade exclusiva dos autores.
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